O problema de terraformar Marte

O problema de terraformar Marte



O problema de terraformar Marte

Marte sempre pairou sobre história humana, nossas imaginações dando forma às suas paisagens vermelhas com incrível detalhamento muito antes de nossas missões espaciais trazerem as mais rudimentares fotos. Na época em que nossas melhores observações do Planeta Vermelho mostravam apenas um disco enferrujado repleto de manchas escuras, as pessoas debatiam se essas marcas eram naturais, ou quem sabe projetos de engenharia de marcianos tecnologicamente avançados. Até mesmo algo mais impressionante: em 1912, o Jornal The Salt Lake Tribune publicou uma manchete que dizia “Marte Povoado por um Grande Vegetal Pensante!”, acompanhada de uma ilustração de Marte, sua aparência musgosa, com um enorme globo ocular, e apoiado no espaço sideral sobre um caule saliente no espaço sideral.

Porque imaginamos Marte há tanto tempo, é fácil esquecer que sua história lhe é própria. Escritas no deserto estão partes de épocas passadas do planeta, escondidas sob as planícies salpicadas de pedregulhos casmurros, sua extensão interrompida por dunas brilhantes e sedosas e por imponentes vulcões. Pesquisas recentes sobre Marte revelam que esta paisagem um dia ostentou vastas extensões de água, um clima mais quente e uma atmosfera mais espessa, mas todas sumiram desde então, deixando para trás a superfície fria e seca que hoje vemos vemos.

Em alguns lugares, marcas de pneus funcionam como registro da exploração humana — ou pelo menos dos nossos avatares robóticos, os veículos automatizados de Marte. Enquanto Marte é um planeta “morto” no sentido de não ter nenhuma atividade geológica notável e nenhuma forma de vida conhecida hoje, ele ainda tem clima (incluindo a tempestade de poeira de proporções globais que tem engolido o veículo “Mars Opportunity” da NASA). Ao contrário da Lua, onde todo o registro das aventuras humanas fora da Terra permanecerá intocado na poeira lunar, os ventos de Marte vão, eventualmente, limpar essas trilhas automobilísticas.

Para os que querem explorar Marte, essas planícies áridas são um destino tentador — mas o por que de alguém querer ir a Marte vai depender de quem você perguntar. Alguns olham para as paisagens intocadas e imaginam que estas podem responder a algumas das nossas questões mais urgentes sobre as origens e a evolução da vida no universo: a vida já existiu em outro mundo? Pode ela ainda existir sob a superfície marciana? Se Marte já teve vida, quão diferente (ou não) era da vida que encontramos na Terra? E se a vida não começou lá (ou começou, mas não floresceu) — por quê? A proximidade de Marte e a facilidade (relativa) de adaptar as ferramentas de exploração terrestre para sua superfície rochosa fazem com que o planeta seja um dos principais lugares onde essas questões possam ser feitas e respondidas.

No entanto, há quem veja esse panorama marciano como uma tela em branco, uma prancheta sobre a qual escrever uma nova história para Marte e para a humanidade. Terraformação, ou a ideia de transformar radicalmente o ambiente de outro mundo para ser mais suscetível a vida, já existe há muito tempo na ficção científica e na literatura sobre ciência. Um dos livros mais influentes sobre terraformação borrou a linha entre fato e ficção: o cientista James Lovelock e o autor Michael Allaby escreveram juntos, em 1984, o romance The Greening of Mars e usaram a ficção científica para traçar possíveis meios de transformar o Planeta Vermelho em pastos. Embora as ideias para os métodos de terraformação variem bastante, o raciocínio básico é que a adição de gases de efeito estufa (normalmente mais dióxido de carbono) na atmosfera do planeta poderia criar aquecimento suficiente e pressão atmosférica para que água líquida exista novamente naquela superfície – apenas um empurrão na difícil caminhada para tornar Marte habitável novamente.

Hoje, visões do planeta aparecem em vídeos promocionais da SpaceX: um Marte de computação gráfica gira em direção ao futuro, sua superfície se torna verde e nuvens flutuam em sua atmosfera espessa. Supostamente, a água, o oxigênio e o dióxido de carbono sugeridos por essas imagens teriam sido "liberados" pelo midiático enfant terribleda tecnologia, Elon Musk, cuja proposta de terraformação consiste em lançar armas termonucleares sobre as calotas polares.

Apesar do fascínio gerado pela terraformação na imaginação popular, ela permanece parte do reino da ficção. Por um lado, Marte parece não ter as reservas necessárias de dióxido de carbono para bombear sua atmosfera e aquecê-la em primeiro lugar. Recentemente, pesquisadores examinaram todos os inventários de dióxido de carbono descobertos nas últimas décadas de pesquisas sobre Marte e chegaram à conclusão de que, mesmo que alguém pudesse, de alguma forma, colocá-los todos de todas as fontes na atmosfera, se apenas mudanças minúsculas de pressão e temperatura aconteceriam.

Além disso, elevar a temperatura e a pressão da atmosfera significa apenas que qualquer água disponível não irá evaporar imediatamente, mas ainda assim irá evaporar e desaparecer rapidamente no ar (ainda) rarefeito. Como a atmosfera marciana é incrivelmente seca, essa água nunca retornaria em forma de chuva. Assim, não voltaria ao solo, como ocorre na Terra, e permaneceria sequestrada no ar (ainda) seco. Embora os autores admitam que seja sempre possível recorrer a supostos depósitos de carbonato que ainda não foram descobertos, disponibilizar qualquer dióxido de carbono desses depósitos exigiria uma operação de mineração em escala planetária. Isso só para coletá-lo e processá-lo fora das rochas.

Resumindo, o meio ambiente de um planeta não é uma piscina vazia que pode ser enchida novamente com uma mangueira de jardim, assim trazendo-a de volta para sua função anterior. Isso não deve surpreender ninguém que esteja atento às mudanças climáticas, um desastre global gerado por alterações inexoráveis na habitabilidade da Terra e pelo fracasso contínuo dos governos e da indústria em agir com a urgência necessária para preservá-la. Ainda que seja possível debater a possibilidade de deixar Marte habitável, só temos como exemplo a mudança não-intencional da Terra que a deixou menos habitável e nenhuma ideia prática de como fazer o inverso.

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Questões sobre como supostamente terraformaríamos Marte são irrelevantes de muitas maneiras — mas como fazemos essa pergunta revela muito sobre como imaginamos nosso relacionamento com o meio ambiente, especialmente para o da Terra. Afinal, não é preciso ir a Marte para encontrar uma fronteira intocada, ou para pelo menos termos a ideia de uma — o conceito de terra selvagem e intocada é profundamente enraizado no mito americano.

Paisagens selvagens foram eternizadas pelas pinturas arrebatadoras e pela prosa de naturalistas como Thomas Cole e John Muir. Quando os Parques Nacionais foram inicialmente criados nos Estados Unidos, no século 19, eles eram (e ainda são) vistos como garantias de algo verdadeiramente único, precioso e, sim, americano para as gerações vindouras. Em 2017, quando o governo Trump anunciou sua intenção de reduzir os monumentos nacionais “Grand Staircase-Escalante” e “Bear Ears”, houve amplo clamor público. Na mesma época, o deputado Jason Chaffetz, republicano do Utah, apresentou um projeto de lei que permitiria a venda de terras públicas no seu estado. Ele foi forçado a retirar o projeto após uma oposição imediata e ampla.

Mas a natureza selvagem, assim como a invocação de que o destino da humanidade seria o de deixar a Terra, é uma invenção — e uma criação relativamente recente. Embora os Parques Nacionais sejam agora tesouros amados, sua preservação como reservas intocadas foi uma surpresa para as muitas nações indígenas que, na época, estavam ativamente vivendo nessas terras.

Como a ideia de natureza que os colonos tinham era a de um lugar em que os humanos não viviam, a preservação dessas terras significava a remoção das pessoas que moravam ali — e, como esses colonos não conseguiam entender a humanidade dos povos nativos, a separação das pessoas de suas terras de origem deu origem aos planos para a realocação e assimilação forçada desses povos, bem como para a criação do sistema de reservas que persiste hoje.

Defensores da ideia dos seres humanos viverem em Marte argumentam que esse dilema ético não existe para o planeta: nada vivo parece existir lá e, se existir, é provável que sejam apenas micróbios. Afinal de contas, matamos micróbios o tempo todo aqui na Terra — na verdade, matamos até aqueles micróbios que poderiam pegar uma carona em nossos foguetes para contaminar o ambiente de Marte. Qual o problema em matar mais alguns?

Mesmo aqueles compelidos a estudar a história de Marte às vezes argumentam que a transformação do ambiente marciano é inevitável, e que por isso poderíamos acabar logo com isso. Dentro deste campo, há pesquisadores que evitam a palavra terraformação em prol de “ecossíntese”, um termo emprestado da ecologia da restauração aqui na Terra, que significa uma intervenção para restaurar um ambiente anteriormente perturbado.

Enquanto “terraformação” implica que o planeta se tornará mais parecido com a nossa Terra, a “ecossíntese” implica no fato de que restaurar a atmosfera anterior de Marte, mesmo que não resulte em um ar respirável para humanos, é um imperativo moral. A humanidade deveria isso a qualquer vida ainda existente no planeta vermelho.

É de se perguntar se esses pretensos salvadores de Marte defenderiam o retorno da atmosfera primitiva da Terra, como era antes que as cianobactérias fornecessem o oxigênio que a humanidade respira.

 



O valor do meio ambiente só existe em relação à humanidade, ou mais amplamente, em relação à vida? Se sim, que vida? Um ambiente deve ter um propósito de ser digno para a existência? Se sim, com qual objetivo? Na Revista Harper's deste mês, Mort Rosenblum e Samuel Joames, ao falar sobre a mineração de cobre no sudoeste dos EUA, argumentam que nós nos comportamos como se o único mérito de uma terra fosse sua exploração.

As fotografias de James mostram uma vasta rede de minas de poço aberto rasgando o deserto vermelho como se criando a boca do inferno. Os poços expelem riachos de cor turquesa feitos de lixo tóxico em alguns dos lugares mais impressionantes do continente — essa devastação ambiental é a Silver Bell Mine, no Arizona, ou uma futura operação de terraformação em Marte?

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Terraformação pode parecer apenas um desafio de engenharia particularmente difícil, mas, na realidade, é uma porta de saída da tarefa muito mais difícil de confrontar nosso passado, presente e futuro aqui na Terra. Quando invocamos mundos como Marte para ser nossa nova fronteira, estamos apagando a complexa história do que as fronteiras significaram aqui na Terra, bem como o legado da desigualdade que continua hoje. Devemos reconhecer que a transformação radical da terra —seja neste planeta ou além — é também o apagamento da história, e nesse apagamento podemos estar desistindo de algo profundo em Marte, assim como fazemos aqui na Terra.